Apresentação

Gerar, disseminar e debater informações sobre Desordem Urbana, sob enfoque de Saúde Pública, é o objetivo principal deste Blog produzido no Laboratório de Vida Urbana, Consumo & Saúde - LabConsS da FF/UFRJ, com apoio e monitoramento técnico dos bolsistas e egressos do Grupo PET-Programa de Educação Tutorial da SESu/MEC.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Nunca mais voltará Leila Diniz

por Arnaldo Jabor, no Jornal O Globo - 16/06/09

Além da violência, o carioca teme a promiscuidade.

Tom Jobim nadava com força na Lagoa Rodrigo de Freitas naquele verão de 1944. Parou um instante, já chegando ao Sacopã, e olhou em volta, imaginando como seria Ipanema dali a 20 anos. A lagoa era clara, cheia de peixes e garças. Ipanema era uma promessa de vida em seu peito molhado.

Leila Diniz estava rindo no Bar Jangadeiros, em minha mesa, 20 anos depois. Nós éramos jovens, na luz de Ipanema; como Joyce escreveu, estávamos “felizes, moços, perto do selvagem coração da vida”. E eu pensava: “Meu Deus, que alegria! Até quando seremos assim?” Tínhamos uma espécie de paraíso social ali entre Copa e Leblon. Tom Jobim diria anos depois: “O Brasil será feliz quando tudo for uma grande Ipanema”.

Hoje, estou na Rua Visconde de Pirajá com Joana Angélica, espécie de cruz privilegiada da cidade. Vejo o Rio à minha volta. Tudo parece em câmera lenta; na Lagoa, percebo que as árvores cresceram. Moro mais em São Paulo, e eu não via isso quando morava só aqui. Hoje, vejo a natureza linda e corruptora — “Ah... mas é tão lindo... — grande álibi para a miséria que ferve nas ruas. A natureza corrompe.

Hoje, nos afligimos com tantos pobres que expõem suas feridas nas esquinas, com tantos vagabundos descendo dos morros.

O que incomoda a população branquinha não é só o assaltante, é o passeante. Pardos passeantes de chinelos e calção enchem a Zona Sul. Eles pressentem o medo dos classe-médias e desfilam com garbo. O carioca branco se indigna, como se só ele fosse nativo. Vejo que meu mal-estar diante do caos carioca é um mal-estar de classe. Sim, há um horror de classe nos cariocas “brancos”; querem mudar o Rio para ontem, querem que o Rio “volte” a ser algo de “antigamente”. É mentira que tememos apenas a violência. Tememos também a promiscuidade.

O Rio é hoje a saudade de algo que já foi.

Ninguém ama o Rio como ele é. Só os miseráveis que hoje ocupam as praias amam o Rio — são seus anos dourados.

O Rio atingiu seu ponto de “perfeição” (para os pequenos-burgueses) por volta dos anos 50 e 60, quando o acaso deu um tempo na “in-volução” da cidade, e o mito cruzou com o real. A beleza parou um instante entre o erro e a decadência, entre a economia do “milagre” e a tragédia da exclusão das massas, e se equilibrou por alguns anos entre o Posto Nove e a Praça General Osório, criando uma ilha utópica da esquerda festiva (eu estava lá), que não contava ainda com a miséria que se reproduzia nos morros.

Hoje, nas ruas de Ipanema, parece que ando num rio do inferno. O ritmo lento dos desocupados se cruza com os olhares trêmulos de madames e aposentados correndo para trás das grades, biquínis em frente a mendigos, população branca temerosa, movendo-se pela “folga” da “crioulada” e os mendigos que jazem nas portas de igreja, criancinhas brincando na sarjeta, mamadeira e esmolas, caixotes e pernas abertas.

O Rio virou o escândalo dos cariocas. Mas o horror de nada serve, é só angústia vazia. A miséria dos outros tem sido para nós um problema existencial. O “escândalo” parte do equívoco de que os miseráveis são um “erro” da natureza.

O erro está em nós. Escandalizar-se é se salvar. Mas somos parte do escândalo.

É como se toda essa invasão de pardos (não só na pele — pardos na alma, na vida parda) fosse apenas uma “amolação” na vida “branca”.

No entanto, esta mutação da cidade é definitiva.

Voltar a ser o quê? O reduto da bossa nova, a ilusão dos filhos da PUC? Eu vejo as velhas negras de 100 anos vendendo arruda na feira, como escravas de ganho do século XIX, vejo esta mistura baiano-persa dos camelôs e barraquinhas, vejo a malandragem dos feirantes disputando uma risonha luta de classes com madames e velhotes. Vejo isso tudo e entendo que não vai voltar mais nada.

Nunca mais voltará Leila Diniz! Do ponto de vista excludente, de uma administração tradicional, a situação é insolúvel.

O Brasil não virou Ipanema. Ipanema virou o Brasil. Silenciosamente, as 600 favelas que o egoísmo construiu fizeram a revolução parda.

A democracia já desceu o morro.

Esta revolução silenciosa dos excluídos é um trailer, sim, do Brasil, mas não somente como deflagração de violência.

Uma luta social molenga se instalou no dia a dia, nas esmolas, nos assaltos, nas chacinas, nos ataques do Exército. E não é só a incúria dos governantes ou o egoísmo dos ricos; no fundo não é culpa de ninguém. Nossa crueldade é a tradição escravista desta burguesia de ex-negreiros.

O que houve foi uma bolha que cresceu, que estava aí há décadas se formando, uma “bolha antropológica” que provocou uma revolução social suja. Já houve. Ninguém vê isso? É só andar na rua. Um pobre para cada remediado, no coração de Ipanema.

E como reformar as mentes de planejadores e urbanistas clean? A bolha antropológica não pode ser explodida. Tem de ser obedecida.

A bolha sempre esteve ali, desde o tempo das “Memórias de um sargento de milícias”.

Ela sempre esteve aí, só que se arredava nos morros, nas periferias.

Só uma ideologia de reforma que “inclua”, que democratize, pode mudar o Rio. Ficou claro: qualquer ideia de reverter a situação é absurda. A ideologia nostálgica só conduz à ideia de genocídio. Para fazer voltar o chopinho dourado na paz dos sábados, só matando os morros. Há 30 anos era fácil. Havia dinheiro e menos gente. Até hoje, só houve soluções “brancas” para problemas “pardos”. Agora, só dá para fazer um plano de salvação social para o Rio a partir da aceitação da ideia do “insolúvel”. Os marginalizados têm de ser participantes da reforma.

Não há solução. A partir daí, pode-se começar a pensar. Tudo indica que os novos governantes do Rio já estão pensando assim, como foi a amostra do Morro Dona Marta.

É assim que o Brasil terá de ser replanejado: aceitando a senzala, os pretos de ganho, os forros excluídos, os ignorados nos planos de mercado, pois o Rio não vai mudar. Já mudou.

Já aconteceu, já está ocupado.

A bruta face da miséria desmoralizou a sentimentalidade branca.

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